Manhã de segunda-feira, por volta das 10:00hrs., chega ao hospital local Dona Maria, acompanhada de Gracinha, como era conhecida a sua filha Maria das Graças, de quatorze anos de idade. A mãe era o retrato da aflição, o olhar revelava tristeza, dor e desgosto profundos. Estava descontrolada, agitada ao extremo, chorava, e aos gritos chamava pelo obstetra de plantão. Gracinha estava perturbada, atônita, confusa, quase sem ação, deixava-se conduzir por sua genitora pelos corredores do nosocômio. Estava absorvida pelo medo e dominada pela fúria materna. Os enfermeiros que ali se encontravam, buscavam acalma-la, mas ela estava indócil.
Conduzida a presença do plantonista, e de frente para ele, face a face, sem que houvesse qualquer diálogo, retirou um escrito e o entregou dizendo-lhe: É urgente!
O médico, a medida que lia o documento, sua expressão facial se transformava. Afinal, o que esta ali escrito ia de encontro aos seus princípios éticos e religiosos. Tratava-se de autorização judicial para retirada do feto.
O conflito apoderou-se de seu ser. Não podia deixar de cumprir a determinação judicial e, por outro lado, se a cumprisse estaria a violentar sua consciência.
Envolto nesse dilema, a insistência da genitora da adolescente na realização imediata do aborto, consumia-lhe a mente lhe feria a alma.
Buscando adiar a decisão, tentou acalmá-la pedindo que se sentasse. Enquanto isso, num cantinho do consultório, acomodava a adolescente numa maca para examiná-la.
Voltando-se para a genitora, perguntou-lhe o que havia acontecido? Ela, então, debulhando-se em lagrimas, disse que a sua filha havia sido violentada pelo padrasto, e que dele encontrava-se grávida. Disse-lhe também que o fato foi comunicado à autoridade policial e que ele se encontrava preso.
Na justiça, confessou ele, despudoradamente, o mal que houvera feito, acrescentando que agiu sem o consentimento de sua enteada, desvirginando-a antes que outrem o fizesse. A horrenda confissão lhe arrancou do peito todo sentimento que por ele nutria.
Foram conviver quando Gracinha contava com dois anos. Estavam juntos há cerca de dez anos, de cuja união nasceram dois filhos. Daí, o seu sofrimento, dor e mágoa.
Após ouvir o relato, decidiu pelo cumprimento da ordem judicial.
A menina chorava na maca, Instintivamente sabia que o seu filho ser-lhe-ia arrancado do ventre.
Girando a cadeira na direção em que encontrava a aflita menina, pensou consigo: ” É certo que a gestação decorreu de uma violência contra aquela menina, mais porque responsabilizar a criança que ela carrega em seu ventre, por um crime que ela não cometeu?
Voltou-se então, para Dona Maria e objetivando, despersuadi-la, argumentou: ” Antes de dar inicio aos trabalhos, eu vou colocar uma música para a senhora ouvir. É uma música única, é uma música que fala de Deus, do amor e da vida. Após ouvi-la, a senhora me diz se prossigo ou não, ok? Ela consentiu.
Com suave ternura, pediu-lhe para fechar os olhos, relaxar, e abrir a alma e espirito.
Aproximou-se da menina e delicadamente pediu-lhe para ficar calma. Em seguida deu início ao exame de ultrassonografia, deixando o aparelho em viva voz…
Alguns segundos depois, todos ouviram a música. Era mais ou menos assim: “tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…tum…”…
Á medida que ouvia a melodia, o semblante da angustiada mãe se modificava, ficando mais leve…embora os olhos ainda estivessem fechados, lagrimas deslizavam mansamente no seu rosto…
Alguns minutos se passaram e, ainda com o aparelho ligado, o médico esclareceu: “Essa música que a senhora está a ouvir é o coração de seu neto ou neta a pulsar. Ela revela o amor e a bondade de Deus a oportunizar a um ser humano o dom da vida”.
Diga-me, então, desligo ou não a música?
Sorrindo ternamente e com o rosto ainda molhado, ela respondeu: ” meu neto não tem culpa. Deixe-o nascer”.
Enternecido, abraçando-as, em silenciosa oração, agradeceu a Deus por ter lhe permitido salvar mais uma vida.
Autor: DrºAntonio Carlos Souza Hygino – Juiz de Direito Comarca Itabuna/BA
Fonte: Clinica Médica 28 de Julho
